Frágeis Flores

Não chorou; sua alma era das que não têm lágrimas, enquanto lhe restam forças.

XIX

Ao caminhar pelo Parque Tenente Siqueira Campos (Trianon), um pedaço da mata atlântica encravado em uma das mais movimentadas avenidas de São Paulo, é difícil não pensar no passado, suas árvores e caminhos evocam tempos antigos onde os grandes prédios que o cercam não passavam de um sonho distante no futuro.

Sentado em um banco, deixo minha mente vagar e aos poucos um pouco desse passado começa a se tornar visível. Pessoas, com suas roupas antigas caminham pelo parque misturadas as pessoas do presente que não conseguem vê-las.

Passado e o presente caminham lado a lado no entanto sem terem consciência um do outro. Antigo se mistura com o novo e eu que caminho entre os dois mundos logo não sei mais quando estou. Minhas roupas já não são mais o comum jeans e camiseta, mas um elegante terno da época, passo em meio às pessoas, as do passado agora muito mais vivas do que as do presente, que ainda não conseguem me ver.

O parque de volta ao explendor da inauguração, deslumbrante a cada olhar. Faço milhões de mesuras que passam desapercebidas aos cavalheiros e damas ao meu redor, isso me deixa triste, mas não o bastante para me impedir de prosseguir.

Sigo pelos caminhos me embrenhando cada vez mais no parque até que a vejo, linda em seu vestido branco todo rendado, segurando em suas mãos calçadas com delicadas luvas de cetim uma linda sombrinha. Chego mais perto para ver seu rosto e ela sorri, não apenas sorri, mas sorri para mim. O fato dela ser capaz de me ver é ofuscado por seu belo sorriso, seus dentes pequenos e perfeitos como pérolas, seus olhos cor de avelã e sua pele que brilha ao sol me encanta.

Antes que eu perceba ela foge pelos caminhos do parque, a sigo sem a alcançar ou a perder de vista. Finalmente ela para e eu me aproximo, hesitante com medo de que algum movimento brusco faça ela fugir novamente, mas não ela apenas fica parada ali, sorrindo.

Quando finalmente ficamos cara a cara ela me estende uma mão, que pego cuidadosamente entre as minhas plantando nela um beijo delicado, ao levantar meu rosto, acordo, adormeci sentado no banco e sonhei com o passado. Pudera sonhos como esse serem mais frequentes.

Interlúdio VIII

Afastei-me dela durante esse período de preparativos, eu precisava limpar minha mente e clarear meu espírito, afinal de contas ela seria minha primeira cria e além da minha própria transformação e dos relatos das crônicas eu não tinha certeza de que conseguiria fazer tudo direito. Disse-lhe que me ausentaria por dois meses, voltaria para casa e deixaria tudo pronto para sua chegada, e que ela usasse esses dois meses para se despedir de todos aqueles a quem ela quisesse bem. Nossa despedida, mesmo que por um curto período não foi fácil, ambos choramos e trocamos mais e mais juras de amor eterno, eternidade que estava apenas a um passo de se realizar.

Nesses dois meses longe dela, o tempo se arrastava lentamente, cada sengundo se fazendo sentido por inteiro cou que soubessem o que estava acontecendo. Preparei minha casa em Berlin para sua nova hóspede de modo que ela se sentisse a vontade com tudo, mudei toda a decoração e instruí a criadagem sobre como agir na sua chegada. Seus pais haviam concordado com a proposta do colégio interno e um de meus agentes a traria para mim. Já estávamos longe por tempo demais tempo o bastante para que na véspera de sua chegada eu já não conseguisse raciocinar claramente.

Tudo preparado de modo que ela pudesse fazer uma visita a Berlin durante o dia, ver as maravilhas da cidade pela primeira e última vez sob a luz do sol, durante as noites, nos amávamos talvez com mais ardor do que antes. Ela ficou deslumbrada com tudo o que viu, principalmente com minha casa e com nosso quarto preparado especialmente para sua chegada.

Logo veio a noite fatídica, saí cedo de casa, precisava estar bem alimentado para realizar a transformação, quando cheguei, ela já estava me esperando, linda em uma camisola de seda, seus cabelos presos em uma trança perfumada e seus olhos brilhando com a alegria dos mortais. Levei-a para os meus aposentos secretos, a limpei e preparei para a vida eterna, pois seu corpo não mais conheceria a mudança. Deixei seus cabelos longos, no mais removi todos os seus outros pêlos, deixando-a como uma criança, minha linda criança.

Finalmente eu beberia seu sangue, esse sangue pelo qual ansiava a tanto tempo, ela me envolveu em um abraço e eu toquei seu pescoço com minhas presas, senti um calafrio atravessar meu corpo ao perfurar a pele e um êxtase indescritível quando as primeiras gotas de seu sangue tocaram minha língua. Nesse momento éramos um, nossas lembranças sendo trocadas, suas memórias de menina entrando em minha mente e seu sangue entrando em minha boca como ferro derretido. Senti seu abraço afrouxar e dei-me conta de que quase a havia matado, ela iria morrer naquela noite, mas não sem nascer para a vida eterna. Rasguei a pele do meu pulso esquerdo e aproximei de sua boca enquanto a instava para beber, beba meu amor, minha criança, minha cria, beba o sangue amaldiçoado de seu pai, beba para nos unirmos na noite eterna.

Bebendo quase em forças no começo, ela logo estava sugando voraz como um recém-nascido em sua primeira mamada, e era exatamente o que estava acontecendo ali. Mais uma vez nossas mentes se tornaram uma e memórias foram trocadas pela última vez antes que uma pesada cortina caísse entre nossos pensamentos para sempre. Logo ela foi acometida pelas dores de sua morte humana, levantei-a em meus braços e a levei para uma banheira onde todas as impurezas pudessem ler lavadas, fiquei a seu lado cantando uma velha cantiga que minha mãe costumava cantar para mim quando eu era criança, e logo ela adormeceu. Não mais como humana, mas sim como imortal, minha amada primeira cria e amante para toda a eternidade.

Adormecida, sonhando seus sonhos de menina é como ela está agora, deitada em nossa cama enquanto eu escrevo essas parcas linhas e velo seu sono, logo ela despertará e sairemos para nossa primeira caçada de muitas que ainda virão...

Espero não ter aborrecido você leitor, com este meu relato, espero ainda poder escrever uma outra vez, pois descobri finalmente porque eles escreveram tanto sobre nós e sobre si mesmos. Ao escrever descobri uma paz de espírito que antes eu julgava inalcançável. Aí está, minha primeira obra, quem sabe eu não escreva minhas próprias crônicas um dia? Mas agora devo ir, a noite ainda é uma criança e minha amada já desperta faminta em sua nova condição.

Adeus.

Fim
Espero que tenham gostado, caso não, paciência. Só lhes peço uma coisa: comentem, por mais sem sentido que o comentário possa parecer, para mim, cada um deles é um incentivo a continuar escrevendo.

Interlúdio VII

Depois daquela festa nos tornamos amigos, e não muito depois amantes, sim, nos amamos, eu nunca me senti tão vivo, e a idéia de trazê-la para as trevas estava cada vez mais forte em mim. Eu precisava saber se ela estava pronta, pronta para receber o Dom das Trevas e todas as alegrias, e responsabilidades, que ele traria. Resolvi vasculhar sua mente em busca de indícios que me ajudassem a decidir, antes não tivesse feito isso... Todos os seus pensamentos giravam em torno das crônicas, do quanto ela adoraria que um de nós viesse a levasse com ela para a noite eterna. Mas não era só isso, ela sabia! Ela tinha quase certeza de que eu era um vampiro e estava esperando pacientemente que eu me revelasse. O que eu deveria fazer? Dizer a ela que sim, eu sou um vampiro e venha comigo para a noite eterna? Não, eu estava confuso, mas não só isso, eu estava confuso e amando.

Foi ela quem me deu a deixa que eu precisava para me decidir, um dia logo após nos amarmos, ela disse:

- Você é um deles, não é? Seus hábitos noturnos, sua pele branca, seus caninos afiados e principalmente seus olhos brilhantes, sim, você é um deles!

O que eu mais temia finalmente tinha acontecido, ela realmente sabia, e pego de surpresa na minha indecisão de me revelar ou não, abri o jogo:

- Sim eu sou um deles. Amaldiçoado a vagar pelas noites indefinidamente sem nunca mais saber o que é sentir o calor do sol na pele, amaldiçoado a ver todos aqueles a quem amei morrerem e mais uma vez amaldiçoado por te amar o bastante para querer dividir essa maldição contigo.

Seus olhos brilharam de uma forma como eu nunca tinha visto ao ouvir minhas palavras, ela me abraçou e cobriu-me de beijos, pego nessa sua paixão quase a transformei ali mesmo, mas não, preparativos deveriam ser feitos antes que ela pudesse se juntar a mim.

- Você está disposta a compartilhar da minha maldição por toda a eternidade? Você abriria mão da sua vida mortal para viver comigo para sempre?

- Estou, estou e você sabe muito bem disso, sempre xeretando meus pensamentos seu bobo! Eu te desejo e quero viver com você para sempre! Seremos para sempre felizes e as noites não serão mais tão longas e solitárias quando tivermos um ao outro!

Emocionado por suas palavras, a deixei ainda em êxtase para começar os preparativos, muitas previdências deveriam ser tomadas, ela ainda dependente dos pais pelas leis brasileiras não poderia simplesmente sumir, logo foi preciso uma desculpa para que ela pudesse me acompanhar, nada muito difícil para mim. Mandei meus agentes prepararem uma carta que diria a seus pais que ela fora escolhida para receber uma bolsa de estudos integral em um colégio interno na Suíça, de onde retornaria apenas uma vez por ano para passar as festas com a família. Feito isso bastava apenas seus pais concordarem para que pudéssemos dar início à transformação.

Interlúdio VI

Finalmente veio a noite e com ela a tão esperada festa, mesmo estando ligeiramente atrasado – a festa começaria às cinco da tarde, com o sol ainda me impedindo de sair – demorei um pouco me preparando, eu simplesmente não conseguia decidir o que vestir, no final das contas acabei colocando uma calça jeans e uma blusa preta de gola alta, também fiz a barba e penteei meus cabelos para que eles parecessem despenteados, algo que está moda entre os mortais atualmente. Ao descer encontrei com o rapaz que havia me convidado, ele disse que ficou me esperando a tarde toda na recepção, pois foi impedido de me chamar uma vez que eu tinha deixado claro que não queria ser incomodado por ninguém.

Enquanto nos dirigíamos a festa culminei meu companheiro de perguntas sobre as pessoas que deveríamos encontrar lá, ele por sua vez também me encheu de perguntas sobre as mulheres da Rússia, e do estilo de vida do qual ele ouviu dizer que levávamos. Acabei me distraindo ao descrever minha amada Rússia em seus mínimos detalhes e estava assim, distraído quando chegamos.

A festa era em uma casa modesta, estavam todos reunidos na garagem bebendo e conversando tendo algo que os jovens mortais costumam chamar de música (com guitarras e vocais horrendos, parecia que o vocalista era um porco agonizante) tocando ao fundo. A primeira coisa que fiz foi procurá-la com os olhos, a encontrei sentada em um canto conversando animadamente sobre um assunto qualquer, mesmo sorrindo seus olhos ainda mostravam apenas a tristeza que permeava seus pensamentos, mais uma vez fui acometido da vontade de possuí-la ali mesmo, rasgar seu pescoço e beber seu sangue cujo perfume já estava me deixando louco, mas não, você deve se ater a seus planos, disse a mim mesmo, vai se aproximar dela como mortal, e mortal você é hoje.

Depois de ser apresentado a todos recebi um copo cheio de cerveja e uma cadeira, sentado ali me pus mais uma vez contar aquela história sobre ter acabado de me formar e estar de viagem pelo mundo. Já acostumado com a habitual torrente de perguntas sobre o meu estilo de vida e até mesmo algumas sobre os boatos que corriam sobre mim, eu só esperava o momento certo para me aproximar dela, que continuava sentada em seu canto, só que agora solitária, olhando fixamente para a cerveja em suas mãos enquanto seu pensamento alçava vôo, indo para longe dali.

Só consegui meu momento a sós com ela quando os convidados da festa começaram a dar sinais de embriaguês. Sentei-me ao seu lado e não soube o que fazer, me senti estúpido com ela sentada do meu lado e eu sem ao menos conseguir iniciar uma conversa, quantas vezes não imaginei o que iria dizer a ela e sobre o que conversaríamos. Mas quando ela começou a conversa fiquei surpreso, tão feliz que por mais que eu me esforce não consigo me lembrar exatamente das palavras que foram trocadas, apenas guardo em meu peito o sentimento de felicidade, que compartilhamos por aqueles breves momentos.

Interlúdio V

Mesmo aparentemente feliz, para mim, que podia ver o que realmente se passava em seu coração, estava claro que não era assim que ela se sentia. Eu podia ver quanta tristeza e solidão ela carregava por trás daquele sorriso capaz de amolecer o mais duro dos corações. Senti pena, não... Pena não é a palavra certa... Eu apenas entendia o porquê de mesmo com todo o sofrimento ela era capaz de sorrir, ela sorria por seus amigos, para que eles não se preocupassem com algo que mesmo que quisessem, não poderiam mudar. Mas isso não explicava a felicidade crescente que eu sentia. Não só entender, mas compartilhar de sentimentos iguais, meu coração estivesse ansiando por alguém capaz de entender suas dores, alguém que pudesse curá-lo e ser curado por ele. A minha perdição veio no momento em que compreendi tudo isso.

Eu já não conseguia tirar Camila dos meus pensamentos, nem todo o sangue do mundo poderia desviar minha mente dela nem que por um instante apenas. Pensava em tomá-la para mim, levando-a para casa comigo, transformando-a em um monstro como eu, companheira perfeita para toda eternidade. Eu precisava descobrir um jeito de me aproximar dela, não como o vampiro imortal, mas como alguém capaz de ajudá-la a curar seu coração. Planos e mais planos foram feitos e descartados, quando não conseguia vê-la em seus passeios, entrava em sua casa para velar-lhe o sono. Apenas quando adormecida, mostravam-se em seu rosto os sinais do que realmente sentia. Quantas vezes durante essas vigílias a alvura de seu pescoço e o cheiro de seu sangue quase não me fizeram perder a cabeça?

A chance de me apresentar a ela veio de uma forma inesperada em uma das minhas inúmeras visitas ao bar próximo ao hotel. Era um dia de festa na cidade, todos saiam de casa com suas melhores roupas tentando causar a melhor impressão possível, eu trajando o jeans de sempre estava sentado pensando em Camila enquanto “olhava sem ver” as pessoas passando por mim. E assim, sem que eu me desse conta, fui inserido em uma conversa e bombardeado com perguntas do tipo: “De onde você veio?”, “Porque logo Boa Esperança?”, etc... Respondi da melhor maneira possível, com alguma história de como havia acabado a faculdade e estava fazendo uma viagem pelo Brasil sem previsão de retorno. No meio de meus “inquisidores” estava um dos amigos de Camila, dei uma atenção especial a ele e no final da noite éramos velhos amigos. Ele me convidou para uma festinha que se realizaria no dia seguinte dizendo que seria interessante e que haveria algumas mulheres bonitas por lá, respondi prontamente que sim, dizendo que estaria lá assim que resolvesse alguns problemas menores a respeito da viagem com minha família.

Passei o resto da noite em meu quarto pensando o que faria, diria e como agiria na presença da pessoa já tão preciosa para meu coração. Uma coisa era certa, eu precisava me alimentar, e bem, antes de me dirigir a essa festa. Um pouco do Dom da Nuvem e logo estava me alimentando bem longe da cidadezinha pacata, sem tempo a perder escondi meus restos de qualquer forma, embriagado com o sangue que acabara de beber e com a ansiedade do encontro que estava por vir. Cheguei em casa quase ao amanhecer, enfiei-me em baixo das cobertas avisando na recepção para que ninguém me perturbasse o dia todo, apesar de querer muito sair e gastar minha ansiedade por aí, ficava como que morto enquanto o sol se mostrasse.

Interlúdio IV

Havia me despedido de Amana, mas ainda não sentia o desejo de voltar para casa, então, resolvi visitar uma região do sul de Minas banhada pelo lago de Furnas lugar recomendado por ela dizendo não haver outros vampiros por lá. Acabei escolhendo uma cidadezinha bastante pacata, Boa Esperança, para saciar minha sede por solidão. Mal sabia eu o que iria encontrar nessa cidade tão carente de vida noturna... Se eu porventura soubesse antes será que eu teria evitado meu encontro com ela? Aquela que finalmente derreteria o gelo de meu coração? Não sei... Provavelmente não, e mesmo que eu tivesse a coragem para evitar esse encontro, creio que levaria a eternidade me arrependendo da única chance que tive e perdi, chance de finalmente conhecer o amor.

Me alimentar ali seria um pouco difícil, eu teria que me contentar com a bebida breve, matar estava fora de questão, naquela cidade pequena onde qualquer fato fora do comum ficava na boca do povo por semanas, talvez meses. Devido ao efeito que o sangue dos trópicos causava em mim, era difícil me controlar, e às vezes precisava beber de três, quatro pessoas em uma noite.

Eu sabia dos boatos que corriam sobre mim, boatos esses que iam desde a hipótese de que eu seria um artista estrangeiro em férias, até o mais extremo deles, onde eu era um assassino serial fugindo da polícia, mal sabiam eles que este último estava mais próximo da realidade do que eles poderiam supor. Meus hábitos noturnos e meu comportamento evasivo nas relações sociais contribuíam apenas para fomentar mais boatos, chegando ao ponto onde algumas senhoras faziam o sinal-da-cruz quando me viam passando pela rua, o que me divertia imensamente.

O meu primeiro final de semana ali foi algo marcante, impossível esquecer o dia em que a vi pela primeira vez. Estava em um bar na beira do lago fazendo alguns desenhos da paisagem enquanto fingia beber alguma coisa, logo algumas pessoas se aproximaram, mas ainda sem coragem para falar comigo. Era uma bela noite, a lua cheia imensa em um limpo céu estrelado. É incrível como as estrelas eram visíveis ali, por um momento senti uma saudade das noites passadas com meus irmãos no campo, quando ficávamos deitados na varanda de casa observando as estrelas e fazendo planos para o futuro, felizes, mesmo com as dificuldades do dia a dia. Inocentes e sonhadores, como só as crianças sabem ser...

Foi então que a vi, caminhando com seus amigos, trocando sorrisos e brincadeiras, todos aparentemente felizes, jovens mortais com suas vidas inteiras pela frente. Era um grupo pequeno, mas que chamava atenção dos mortais a minha volta, fofocas e mexericos pipocavam ao meu redor de tal maneira, que tive que fechar minha mente para conseguir raciocinar. Ela estava linda, vestida com uma saia, cinza, pregueada com um corte lateral, que cobria três quartos de suas coxas, sua blusa, preta de alças, colada deixava transparecer as formas do copo e em seus pequenos pés sapatos de salto com bico fino. Suas pernas eram longas e alvas e seus cabelos castanhos iam até a altura do busto. Seu rosto era um caso a parte, como o descrever e conseguir passar toda a sua beleza? Apenas com palavras? Impossível, deixo apenas assim, era mulher, mas ainda tinha muito de menina, um rosto com lindos olhos cor de avelã decorado com uma boca carmesim. Não! Não consigo passar sua beleza com apenas palavras, então deixo que você leitor imagine o mais belo dos anjos deixado nessa terra com o propósito de fascinar a mortais e imortais com sua beleza.

Não deixei de ser notado pelo seu grupo e pude ver que falavam de mim, provavelmente alguma das fofocas que corriam a solta pela cidade, apenas ela, sem dizer nada, se limitou a me observar, desviando o olhar sempre que achava que também estava sendo observada por mim. Eu a desejei no mesmo instante, queria possuí-la ali, no meio de todos aqueles mortais, e que os antigos viessem me punir depois, mesmo tendo acabado de me encontrar com ela, eu já sabia que poderia deixar o mundo sem pesares...

Interlúdio III

Eu não era o único vampiro na cidade, espalhados por lá havia vários outros, a grande maioria jovens e fracos demais para sequer conseguir sentir minha presença. A maioria deles levados até ali pelos relatos de David, em busca das mesmas emoções, seguindo as crônicas como uma bíblia, peregrinando pelos locais das aventuras narradas com a esperança de se encontrar com seus heróis e deuses. Evitei me encontrar com essas crianças, me retirando sempre que elas se aproximavam, assim o fiz mesmo sendo capaz de ocultar tão bem minha natureza que mesmo que nos encontrássemos na mesma sala eles não me perceberiam. Pensei que esse meu isolamento da sociedade vampírica iria continuar até o final de minha viagem, mas eu não poderia estar mais enganado.

Em uma noite após me alimentar, estava no bar do hotel verificando minhas finanças, finalmente pensando em voltar para casa, quando ela apareceu. Vinha em minha direção trajando um vestidinho branco que deixava a mostra um belo par de pernas bem torneadas, seus cabelos, lisos e negros, desciam até o meio de suas costas. Seu rosto pálido ainda mostrava o sinal de uma tez morena, que se acentuava devido à cor de seu vestido, seus traços claramente indígenas contrastavam de modo espetacular com seus olhos de um azul celeste que brilhavam intensamente devido ao sangue negro que corria em suas veias. Seu perfume adocicado e um tanto lúgubre de cravos e sua aparição repentina me deixaram sem reação por alguns instantes, tempo o bastante para que ela tomasse o lugar ao meu lado.

- Você não é como eles, essas crianças que infestam minha cidade deixando sua bagunça toda espalhada por aí, atraindo atenção desnecessária dos mortais. Não... Você é bem mais antigo, talvez tão antigo como eu.

- Bem, não sei quanto à idade, mas creio que os motivos que me trouxeram aqui são os mesmos que os dessas crianças.

- Eu venho lhe observando a algum tempo, evitando a compania de outros imortais, sempre cuidadoso com suas refeições... Você está bem longe de casa, não? Vejo neve em suas lembranças. Provavelmente veio de um país nórdico, Noruega talvez?

Então ela vinha me observando há algum tempo? Ela deveria ser mais poderosa do que eu para conseguir ler meus pensamentos assim tão facilmente. Naquele momento minha fascinação se misturava com uma pontada de ódio, ódio por não ter conseguido sentir sua presença, que mesmo agora permanecia oculta, ódio por ter minha privacidade invadida por uma estranha (uma bela estranha devo admitir), ódio por não conseguir captar o menor pensamento de sua mente que estava firmemente protegida contra minhas tentativas. Fechei ainda mais minha mente para impedi-la de perceber essa pequena revolução que acontecia ali, esperando que ela acabasse de fazer seu pedido enquanto pensava no que iria dizer a seguir.

- Rússia na verdade... Victor Karamazov, ao seu dispor. – disse enquanto estendia minha mão.

- Amana, apenas Amana. Mas não é assim que nos cumprimentamos no Brasil – falou ela sobre minha mão estendida -, aqui os cumprimentos são menos formais.
Dizendo isso me deu um beijo no rosto, beijo que queimou não minha pele, mas meu espírito. Era o começo de minha primeira relação com outro imortal, relação esta que durou cinco maravilhosos anos antes que meu coração voltasse a ansiar pela solidão novamente.

Amana – que em Tupi quer dizer “água que cai do céu” – havia sido transformada bem antes da colonização do Brasil, por um espírito da floresta. Ela não disse muita coisa além de que seu criador não resistiu à perda de sangue e acabou morrendo logo em seguida. Ela foi minha amante e minha professora, me ensinou várias coisas durante o tempo em que estivemos juntos e meu deu seu sangue antigo, que aumentou consideravelmente meus poderes que já não eram tão fracos assim e mesmo agora é difícil reprimir um sorriso de felicidade todas as vezes que penso nela. Juntos exploramos cada canto da cidade, às vezes destruindo os jovens mais afoitos que insistiam em se revelar de qualquer maneira aos mortais. Foi também com ela que visitei a floresta amazônica ainda tentando sentir um pouco da emoção descrita por David, sem êxito. Mesmo nunca tendo sido tão feliz assim em toda minha vida de vampiro, Amara ainda não seria aquela que acabaria com todo o gelo de meu coração, finalmente a hora de partir tinha chegado, partida essa que não ocorreu sem lágrimas e promessas de um novo encontro no futuro.

Interlúdio II

Acho que sempre morei na Rússia. Passando alguns anos aqui, outros lá, mas sempre retornando a minha cidade natal, Moscou. Apesar de ser lá que minha história começa, não é onde ela se passa. Minha história se passa em um lugar muito mais distante e quente.

Estava sentado em minha escrivaninha, revisando alguns dados que recebi de meu contador enquanto esperava o momento certo de me alimentar, quando escuto os pensamentos de uma jovem, mais uma desejando que a morte entre pela sua janela enquanto lia um dos livros deles, exatamente em uma parte onde David Talbot narra suas lembranças do Brasil...

Levado pela narrativa envolvente (pelo menos eles são bons escritores, não há dúvida nenhuma sobre isso) e pela paixão da leitora, acabo tomando a decisão de ir ao Brasil e ver todas aquelas maravilhas com meus próprios olhos. Afinal de contas, vinte e cinco anos em apenas um lugar estavam começando a me cansar. Ligo para meu agente e agendo a viagem para a próxima semana, dando a ele tempo para me arranjar um lugar decente para ficar, faço questão de que seja uma cobertura perto da praia, não vejo mal nenhum em esbanjar um pouco, ainda mais na minha primeira viagem para fora da Rússia.

As noites passam lentamente, logo me vejo como uma criança que não consegue dormir na véspera de natal. A bebida breve já não me satisfazia, cacei como nunca, duas, três vítimas por noite. É um círculo vicioso, quando mais bebia, mais excitado ficava, e quanto mais excitado ficava, mais queria beber. Parecia que minha sede nunca iria acabar. Finalmente chega a véspera da viagem, levei apenas algumas peças do meu guarda-roupa, mesmo não sendo afetado pelo clima da mesma maneira que os mortais, o Brasil é um país tropical e andar por lá usando pesados casacos de pele chamaria mais atenção do que eu gostaria. A viagem em si não pareceu demorar muito, com apenas uma escala em Paris, sem me importar com a beleza do lugar saí para alimentar-me sem ter grande necessidade no momento, apenas precisava sentir sangue quente correndo pelo meu corpo.

Finalmente cheguei ao Rio, e nem todas as descrições de David poderiam ter me preparado para o que encontrei ali, a vida em um país tropical realmente era muito diferente, desde o comportamento até o vestuário as pessoas eram completamente diferentes das quais com que eu estava acostumado. Fiquei em uma suíte de cobertura de frente para o mar, passando minha primeira noite ali apenas contemplando a vista incrível que a Baia de Guanabara me proporcionava.

Por um mês eu me deliciei com as maravilhas da cidade e de suas pessoas, festas, recepções, boates, tudo. Havia plenitude de malfeitores para que eu pudesse matar, afinal de contas para mim era muito difícil não matar ali, o sangue dos trópicos assim como o clima é quente, quente o bastante para me deixar como que embriagado após cada refeição. Mesmo assim nem por um momento fui descuidado com meus restos, não querendo atrair atenção desnecessária para minha presença. Eu sentia como se o gelo que envolvia meu coração, me separando do mundo, finalmente começava a se derreter.

Interlúdio I

Bem, como minha inspiração anda meio baixa, vou postar um conto que escrevi há algum tempo baseado nas Crônicas Vampirescas de Anne Rice:

Perdição


Eu sou um vampiro.

Você provavelmente já deve ter ouvido algumas histórias sobre vampiros, não?
Esqueça. Nada de me transformar em morcego ou temer coisas sagradas. Sim, um vampiro nos moldes de Lestat, o eterno príncipe moleque. Mas algo tem que ficar claro antes que eu comece minha história:

Não sou como Lestat.

Odeio me expor, e já se passaram mais de duzentos anos entre os encontros com um de minha espécie. Não uso roupas espalhafatosas, cheias de babados, com muito brilho ou veludo. Odeio veludo. Odeio o modo como alguns de minha espécie andam por aí se sentindo a mais perfeita forma de “vida” da Terra. Odeio como eles escrevem seus livros, com todas aquelas histórias cheias de riquezas e paixões.

Não encaro o Dom das Trevas (a única coisa deles da qual gostei, a expressão “Dom das Trevas”) como uma maldição... Tão pouco como uma benção. É algo com o qual me acostumei, nem bom nem ruim.

Já disse que odeio as crônicas? Sim, já... E mesmo assim estou aqui escrevendo minha própria história. Você deve estar se perguntando o porquê, a resposta... Nem mesmo eu sei.

Empolguei-me tanto falando do que odeio que acabei esquecendo de me apresentar. Perdão, prometo corrigir essa falta em breve, mas primeiro devo avisar a você leitor que essa não será uma história em nada parecida com as deles. Então se você estiver esperando algo nesse sentido, é melhor parar por aqui. Sério, dê o fora agora ou depois não venha me culpar pelo seu tempo perdido... Ainda aqui? Então vejo que é hora de começar...

Meu nome é Victor e eu sou um vampiro.

Um vampiro como Lestat, mas ao mesmo tempo totalmente diferente. Já disse isso não? É que quero deixar bem clara essa parte. Prometo que essa foi a última vez.

Se nos encontrarmos na rua, provavelmente não verá nada de estranho em mim, talvez você só veja um rapaz de uns vinte anos, com cabelos negros como carvão e a pele um pouco pálida demais. Deve ainda pensar ser mais um daqueles drogados que inundam as ruas hoje em dia. Não sou extremamente belo, tampouco sou uma criação de Boticcelli que ganhou vida, apenas um rapaz com olhos castanhos e uma eterna barba por fazer. Nada que vá chamar muita atenção em qualquer lugar do mundo.

Não vim aqui contar como fui transformado, ou minhas (des) aventuras no meio de minha espécie. Esta história é sobre mim, isso é um fato inegável, mas ela não me pertence. Ela pertence a uma jovem mortal que como milhares de outras leram as crônicas e sonham com o dia em que algum de nós - Lestat, Armand ou até mesmo Louis - entrará pela sua janela oferecendo o Dom das Trevas em meio a promessas de amor através da eternidade. É essa mortal que me levou a escrever... Mas estou me adiantando, vamos pelo começo, só um pouco mais de paciência e logo você a conhecerá.

XVIII

A solidão ronda a toca da raposa.

Nesses momentos onde não importa quantos amigos tenha ou quantas pessoas conheça é impossível não se sentir sozinho.

A paz que a solidão geralmente trás se transforma na angústia da espera por aquela pessoa que um fim dará nisso.

Algo nunca muda; A solidão sempre dói mais quando se sabe que seu fim existe, mas longe... Muito longe. Não há o que se possa fazer além de esperar, não dependemos apenas de nós para sermos felizes e esse foi o grande erro do Criador.

Que as corridas pelos campos não sejam mais solitárias, esse é meu desejo.

XVII

Estou cansado de correr sozinho pelos campos, por mais belos que eles sejam é difícil apreciar essa beleza quando se está sozinho.

Encontrar a compreensão em olhos que não sejam os do seu reflexo no espelho é indescritível. Eu quero acreditar na pessoa que demonstra no olhar me compreender tão bem, quero acreditar com tanta força quanto tenho medo que que tudo não passe de um engano e que eu acabe decepcionado e sofrendo, denovo.

Ainda assim me recuso a abandonar as esperanças, coração tolo, nunca aprende não é?

Enquanto a certeza não vem, os sonhos vêm trazendo a visão de uma corrida pelo belo campo verdejante, a diferença; dessa vez a raposa não está sozinha.

Ut vicis addo verum, que o tempo traga a verdade.

XVI

Menininha que chegou de repente na minha vida e agora me faz esperar ansiosamente por nossos encontros.

Menininha me me encanta com seu sorriso sincero e alegria cativante.

Menininha que conheço a tão pouco tempo mas dá a sensação se ser uma velha amiga.

Menininha que sente e sofre, que sonha e luta, que ama.

Ah menininha não chores que assim eu choro também!

Não vês que agora meus dias se resumem a esperar nossos encontros? Deixe essa tristeza de lado e venha sempre feliz com aquele sorriso no rosto que ilumina meu coração tal qual um sol de bondade.

Ainda assim se a tristeza insistir em ficar não se acanhe, venha assim mesmo e deixe que eu te ajude a espantá-la com um abraço e cafunés...

XV

O vento sopra pelo campo gramado fazendo com que a grama dê a impressão de ser um enorme mar verde. Tomo a trilha que leva a colina do penhasco, onde o campo se encontra com o mar, o cheiro da maresia e da grama verde pisada se misturam evocando boas lembranças de tempos passados.

Ao longe avisto alguém sentado à sombra do velho salgueiro, meu coração bate mais rápido quando vejo que esse alguém é você, corro cada vez mais rápido fazendo a distância sumir num piscar de olhos.

Lá encontro você adormecida com um livro no colo, linda visão. Me aproximo gentilmente para não te acordar e me ponho a observar o ventro brincar com seus cabelos. Como se sentisse minha presença ali você acorda e sorri.

Não dizemos nada, palavras não são necessárias aqui, o que precisarmos dizer um ao outro, diremos com o olhar. Me sento ao seu lado e você apoia sua cabeça em meu ombro fazendo o cheiro de seu cabelo invadir minhas narinas, rosas, eles sempre cheiram a rosas.

O tempo não passa enquanto estamos juntos nesse sonho, lado a lado, conversando em silêncio, felizes o bastante para que eu não pense na hora de acordar e descobrir que você está longe, a felicidade aqui é grande demais para isso.

Logo você se levanta e corre, fugindo de mim com um sorriso nos lábios, seus olhos dizem: "Pega-me se puder"; E enquanto corro atrás de você pelo campo gramado desperto mais uma vez em minha cama com o coração ainda cheio da felicidade do sonho.

XIV

Perdi e encontrei a mim mesmo mais de uma vez, na verdade tantas vezes que hoje já não sei se estou aqui ou se ainda estou perdido.

Minha presença deixa pequenas marcas ao meu redor, isso é bom me faz sentir vivo.

Estou feliz com as mudanças, mas ainda sinto a ausência, as coisas ainda não se acertaram completamente.

Apesar da felicidade minhas palavras se mostram tristes, tristes... Por quê?

Vai ver felicidade é assim, não se escreve, não se explica, não se ensina, não se aprende, se sente.

XIII

Olho pela janela e vejo uma nova paisagem, onde as estrelas são mais difíceis de se ver.

Mudança, renovação. Me mudei, mas não consigo chamar a nova casa de lar e difícilmente conseguirei dizer isso um dia.

Lar é onde está o coração, e o meu está longe, longe... Não exatamente um lugar, mais precisamente uma pessoa, é ao lado dessa pessoa que me sinto a vontade, e ao lado dela fica meu lugar, meu lar.

Mesmo estamos fisicamente separados não quer dizer que estejamos longe, da minha janela ainda consigo ver a lua, a mesma lua que ela também vê pela janela. Assim estamos juntos, mesmo que separados, no coração e memória um do outro, mesmo que sob um luar compartilhado à distância...

Que essa essa postagem de número 13, número sempre auspicioso, traga mais brilho aos sonhos e força para realizá-los.

XII

É triste descobrir que toda sua vida cabe em uma pequena caixa.

Provoca uma sensação estranha no peito, como se a vida até agora foi algo tão insignificante, quase nada, nem o bastante para encher uma caixa...

E então, antes que esses pensamentos tristes me levem para a parte sombria da minha alma, onde o sol nunca brilha, ouço ela dizer em minha cabeça: "Você não pode guardar suas memórias em uma caixa!". O que me faz pensar: Mesmo que minhas posses terrenas caibam em uma pequena caixa, minha vida não foi insignificante ou vazia, pelo contrário!

Todas as coisas que fiz, as pessoas que conheci, os sentimentos que guardei, os sonhos que realizei e os que ainda vou realizar, essas coisas não podem ser guardadas em uma caixa, e são por elas que eu devo medir minha vida.

São as memórias, tanto as que guardamos quanto as das outras pessoas nas quais tomamos parte, que podem dizer se a vida foi boa ou ruim. Estou satisfeito com as minhas...

E você, está satisfeito com as suas?

XI

Estou com medo.

Estou com medo de morar sozinho e das responsabilidades que isso trará, com medo da solidão vir com mais força no meio da noite tirando meu sono e me fazendo chorar.

Estou com medo de me afastar do mundo e ficar preso dentro da minha cabeça apenas com meus pesadelos, medo de que todos me esqueçam e não exista mais um lugar para voltar.

Cansei de me fazer de forte quando no fundo sou tão ou mais frágil que a maioria, quero alguém que seque minhas lágrimas, me dê um abraço bem forte dizendo que tudo vai dar certo e que segure minha mão quando os sonhos forem ruins.

Quero que o medo vá embora.

X

Meu reflexo no espelho está errado.

Vejo-me novamente com os cabelos longos, as roupas pretas e aquela cara de poucos amigos.

Meu reflexo tem os olhos vazios, não há vida neles, apenas tristeza. Eu realmente fui assim? Não me lembro...

Talvez seja impressão minha, mas meu reflexo parece desapontado comigo, o que eu posso ter feito de errado? Sei que mudei, mas no fundo continuo o mesmo, apenas mais feliz com aquela felicidade que chegou de mansinho e não parece querer ir embora.

"Ei reflexo, espere! Por que vira as costas para mim? Não vê que não posso te alcançar do outro lado?"

Minhas mãos batem contra o espelho que se quebra mostrando a parede, filetes de sangue escorrem dos pequenos cortes que ficaram, eu queria muito abraçar meu reflexo e dizer que as coisas serão melhores no futuro, mas ele se foi e mesmo ainda estando feliz ficou um aperto no peito... O que será que aqueles que me conheceram com os olhos tristes e vazios pensam de mim? Eles seriam capazes de me reconhecer hoje?

Não sei a resposta, mas adoraria descobrir.

IX

Estou feliz.

Essa felicidade veio assim, de mansinho como quem não quer nada se esgueirando por entre meu mau humor matinal logo tomando conta de mim.

É uma felicidade sem explicação, estou feliz e isso basta. Quero que ela cresça e cresça até que meu coração não possa mais aguentar e eu morra assim, feliz.

Mas que ela não dure para sempre, nem que seja longa ao ponto de que eu nem me lembre mais como é ser triste e que para mim tristeza se torne apenas mais uma palavra no dicionário e nada mais, não quero uma felicidade assim. Ser sempre feliz nunca tendo conhecido a tristeza não tem graça, como saber o que é felicidade sem conhecer a tristeza? Simplesmente não dá para valorizar uma felicidade assim.

Que os momentos de tristeza existam, para que os de felicidade, mesmo que fulgazes, brilhem como o sol.

VIII

Voltando para casa depois de visitar o campo onde nasceu, a Raposa pensa em como tudo estava diferente por lá.

Os velhos amigos, a muda de suas pelagens adiantada mas não terminada, praticamente adultos e irreconhecíveis, a não ser pelo cheiro. Os cheiros nunca mudam.

A colina da Rosa cheia de novas flores, apenas botões quando partiu, e muitos outros botões que por lá nasceram nesse tempo.

É difícil não se perguntar se tudo vale a pena, é difícil apenas olhar para frente sem nunca desejar ardentemente voltar no tempo, é difícil viver sem o perfume da Rosa. Difícil, quase -mas não completamente-, impossível.

E esse é o medo da Raposa.

VII


Amar tanto que basta a pessoa amada ser feliz, mesmo que com outro. Não consigo amar assim, ou mesmo pensar nesse sentimento como amor, sou egoísta demais para isso. Quero que ela seja feliz sim, mas ao meu lado compartilhando os pequenos pedaços de felicidade que dão cor à vida.

VI

"Vende-se sonhos"
Era o que dizia a simples placa pendurada sobre um porta humilde. Movido pela curiosidade entrei, e nada poderia me preparar para o que vi dentro da suposta loja de sonhos...
Brinquedos, fantasias, coisas sem fim espalhavam-se pelo lugar, sobre tudo havia uma fina camada de poeira por onde de quando em quando se podia ver o o brilho de algum tesouro escondido. Atrás de um balcão que se parecia com o palco de um teatro um velhinho sorridente me observava enquanto eu me perdia admirando o encanto do lugar.
"Então você quer um sonho?" perguntou, eu arrancado de meus devaneios mal consegui balbuciar um sim. Como se ainda esperasse que eu dissesse algo, o velhinho continuou me observando sempre com aquele sorriso nos lábios. Sorriso sincero, daqueles trazem à tona toda a alegria que as vezes nem imaginávamos que havia dentro de nós. Acabei criando coragem e perguntando: "Que tipo de sonhos você vende?"
"Todos eles, dos mais pequenos, e nem por isso menos importantes, aos enormes que só podem ser carregados por muitas pessoas". Sem esperar que eu dissesse mais nada tirou um pequeno embrulho de debaixo do balcão, o embrulho dourado preso com fitas brancas, pequeno o bastante para caber na palma da mão, não parecia um sonho tão grande assim, ainda assim ele me disse: "Tome, este é o seu".
"Tão pequeno assim?" eu disse um tanto ressentido, sempre pensei que meus sonhos haveriam de ser colossais, daqueles sonhos capazes de mudar o mundo, mas nada assim poderia caber em um pacote tão pequeno. Me aproximei do balcão e apanhei o pacote, leve o bastante para me levar a crer que estava vazio, seria meu sonho algo bonito por fora e carente de conteúdo?
"Não se preocupe, aqui eu não vendo sonhos maduros, apenas suas sementes. Cabe a você agora cuidar delas para que seu sonho cresça grande e forte meu filho". Abri o pacote e não havia nada lá dentro, desapontado perguntei o que aquilo significava, com um tom de voz compreensivo, que fez com que eu me sentisse de novo uma criança, ele respondeu:
"Elas já estão com você, sempre estiveram, plantadas em seu coração. A loja só serve para lembrar as pessoas disso, de que todos temos em nossos corações as sementes dos sonhos, para que elas germinem e cresçam é preciso apenas de uma coisa: acreditar. Enquanto você acreditar seu sonho irá crescer forte e quem sabe um dia não se torne realidade? Agora vá meu filho, não se preocupe com o pagamento, só peço que você não deixe seu sonho morrer, isso será pagamento o bastante para mim".
Acordei com o sentimento de alegria ainda forte no peito, eu queria voltar a loja de sonhos e conversar com aquele velhinho e seu sorriso mágico. Talvez esse seja meu sonho, talvez apenas uma parte dele, agora só posso acreditar e acreditar, para que meu sonho não seja apenas um embrulho vazio.

V

Ao assistir esse vídeo fui acometido de uma imensa nostalgia, algumas fotos tem mais de cinco anos e ao revê-las, um pouco dos sentimentos da época voltaram. Foram tempos felizes onde quase não havia com o que se preocupar, éramos todos jovens (bem, quase todos, mas não pretendo me prender muito aos detalhes) e a vida ainda era uma caixa de suspresas, felizes em sua maioria.

Penso em todos aqueles que se foram, pelo tempo ou pela distância, deixando apenas as boas lembraças dos momentos vividos juntos. Penso no quão diferente as coisas estão agora, no quanto a maioria de nós amadureceu e especialmente nas amizades que apesar da distância se mantém fortes.

No fundo, amizade deve ser isso; não importa por quanto tempo ou quão longe fiquemos, que no reencontro será como se nunca tivéssemos nos separado.

IV

Pensei em escrever alguma coisa sobre sentimentos hoje, mas estou sentado em frente ao computador com a mente em branco, nenhuma palavrinha quer sair hoje...

Talvez seja porque para descrever algo tão complexo quanto os sentimentos, palavras não sejam o bastante, ainda mais palavras que aparecerão na tela fria de um computador. Isso as deixa tímidas, afinal de contas é uma grande responsabilidade para elas significar não somente o que se pode ver de cara, mas deixar transparecer o que o autor sentia quando escreveu.

Sentimentos, sentimentos... Nem as palavras ditas conseguem te expressar completamente! Eu gostaria de escrever-te uma carta, onde minha mão, tremendo de emoção, deixaria nas palavras a marca do que sinto, e se os sentimentos fossem intensos o bastante para me arrancar lágrimas, que as marcas das poucas que caíram no papel lhe dêem uma idéia das muitas que derramei enquanto escrevia pensando em você longe, longe... E ao ler essa carta, escrita com tanto esmero pensando em mim assim também tão longe, lágrimas viriam aos seus olhos também, por que não? E ao se misturarem com as minhas a distância entre nós talvez não seja mais tão grande e sim logo ali, tão perto quanto um pensamento...

Ai de mim, com minhas palavras jogadas a esmo, coitadas! É por eu dar a elas responsabilidades tão grandes como essa, que fogem de mim quando mais preciso delas.

III

Desvairadas lembranças, doudas dançam se partindo e se cruzando, em seu caminho nada além do caos restando.
Memórias sombrias, desejos esquecidos, perdidos, cativos, pulsantes eternos na missão de se fazerem vivos.
E as flores? Eternas fortalezas, frágeis como o vidro, pérolas da mente, alimento do espírito, se quebram, se partem se perdem levadas pelo vendaval de emoções como se nunca houvessem existido.
Minha Rosa é a excessão, rubra e imponente, pálida e atraente, azul como o céu do meio-dia, verde como o mar com suas desertas ilhas. Se esconde mostrando, o desejo atiçando, se fecha abrindo, minha vontade aos poucos se esvaindo.
Única, plena, imperfeita, mas para sempre minha eleita. Altiva foge e se esconde, nada muito sério, nunca muito longe, maravilhosa perfeição imperfeita, não há para mim no mundo nenhuma outra assim; mulher, mas eterna garota travessa.

II

O céu desaba em uma chuva que parece ter pressa de ser, vem rápida e aos montes, açoitando sem piedade tudo em seu caminho. A cidade, inimigo natural da chuva, tenta em vão represá-la, prendê-la, tirar sua força e beleza, mas essa não é uma chuva comum, essa chuva é velha, sábia e ainda se lembra de quando não havia cidade e apenas a natureza dominava.

Meus pensamentos se movem para essa época longínqua, apesar de nunca tê-la vivido, posso vê-la ao ver as árvores sendo sacudidas pela chuva e o vento através da minha janela. A visão chega a ser real o bastante para que cheiros cheguem até meu nariz, cheiro de terra molhada, rico e cheio e vida, cheiro inebriante da seiva derramada por inúmeras plantas que existem ali.

Fico embriagado com a magnificência do lugar, caminho por entre as folhagens e as altas árvores, tão velhas quanto o mundo e junto ao chão a poderosa chuva nada mais é do que uma fina garoa filtrada pelas frondosas copas, a terra se mistura as folhas caídas escondendo mais vida do que meus olhos são capazes de ver. Ainda assim os animais se escondem em seus lares temendo pela segurança de sua prole, mas eu não. Tenho a floresta só para mim, somos um: ela, a chuva e eu.

O sonho acaba quando meu telefone toca, ainda estou na cidade que tomou o lugar da floresta mas ninguém parece notar isso. A chuva não se esqueceu, as árvores não se esqueceram, eu nunca esquecerei.

I

Começos sempre foram difíceis para mim, mas não tão difíceis quanto os finais que assombram minha mente a cada novo começo. Infinitas idéias esvoaçam em minha cabeça, mas como seu criador, são tímidas e fogem às minhas tentativas de prendê-las aqui.

O motivo pos trás disso me escapa, se são minhas idéias porque não me obedecem? Talvez o medo de me revelar em palavras seja grande o bastante para causar essa fuga desenfreada, talvez sejam apenas meias-idéias com lindas e brilhantes cascas, mas vazias de sentido ou razão de ser.

Apesar disso continuo tentando, sem coragem para acreditar que o vazio das idéias seja apenas meu vazio no final das contas