Frágeis Flores

Não chorou; sua alma era das que não têm lágrimas, enquanto lhe restam forças.

Interlúdio III

Eu não era o único vampiro na cidade, espalhados por lá havia vários outros, a grande maioria jovens e fracos demais para sequer conseguir sentir minha presença. A maioria deles levados até ali pelos relatos de David, em busca das mesmas emoções, seguindo as crônicas como uma bíblia, peregrinando pelos locais das aventuras narradas com a esperança de se encontrar com seus heróis e deuses. Evitei me encontrar com essas crianças, me retirando sempre que elas se aproximavam, assim o fiz mesmo sendo capaz de ocultar tão bem minha natureza que mesmo que nos encontrássemos na mesma sala eles não me perceberiam. Pensei que esse meu isolamento da sociedade vampírica iria continuar até o final de minha viagem, mas eu não poderia estar mais enganado.

Em uma noite após me alimentar, estava no bar do hotel verificando minhas finanças, finalmente pensando em voltar para casa, quando ela apareceu. Vinha em minha direção trajando um vestidinho branco que deixava a mostra um belo par de pernas bem torneadas, seus cabelos, lisos e negros, desciam até o meio de suas costas. Seu rosto pálido ainda mostrava o sinal de uma tez morena, que se acentuava devido à cor de seu vestido, seus traços claramente indígenas contrastavam de modo espetacular com seus olhos de um azul celeste que brilhavam intensamente devido ao sangue negro que corria em suas veias. Seu perfume adocicado e um tanto lúgubre de cravos e sua aparição repentina me deixaram sem reação por alguns instantes, tempo o bastante para que ela tomasse o lugar ao meu lado.

- Você não é como eles, essas crianças que infestam minha cidade deixando sua bagunça toda espalhada por aí, atraindo atenção desnecessária dos mortais. Não... Você é bem mais antigo, talvez tão antigo como eu.

- Bem, não sei quanto à idade, mas creio que os motivos que me trouxeram aqui são os mesmos que os dessas crianças.

- Eu venho lhe observando a algum tempo, evitando a compania de outros imortais, sempre cuidadoso com suas refeições... Você está bem longe de casa, não? Vejo neve em suas lembranças. Provavelmente veio de um país nórdico, Noruega talvez?

Então ela vinha me observando há algum tempo? Ela deveria ser mais poderosa do que eu para conseguir ler meus pensamentos assim tão facilmente. Naquele momento minha fascinação se misturava com uma pontada de ódio, ódio por não ter conseguido sentir sua presença, que mesmo agora permanecia oculta, ódio por ter minha privacidade invadida por uma estranha (uma bela estranha devo admitir), ódio por não conseguir captar o menor pensamento de sua mente que estava firmemente protegida contra minhas tentativas. Fechei ainda mais minha mente para impedi-la de perceber essa pequena revolução que acontecia ali, esperando que ela acabasse de fazer seu pedido enquanto pensava no que iria dizer a seguir.

- Rússia na verdade... Victor Karamazov, ao seu dispor. – disse enquanto estendia minha mão.

- Amana, apenas Amana. Mas não é assim que nos cumprimentamos no Brasil – falou ela sobre minha mão estendida -, aqui os cumprimentos são menos formais.
Dizendo isso me deu um beijo no rosto, beijo que queimou não minha pele, mas meu espírito. Era o começo de minha primeira relação com outro imortal, relação esta que durou cinco maravilhosos anos antes que meu coração voltasse a ansiar pela solidão novamente.

Amana – que em Tupi quer dizer “água que cai do céu” – havia sido transformada bem antes da colonização do Brasil, por um espírito da floresta. Ela não disse muita coisa além de que seu criador não resistiu à perda de sangue e acabou morrendo logo em seguida. Ela foi minha amante e minha professora, me ensinou várias coisas durante o tempo em que estivemos juntos e meu deu seu sangue antigo, que aumentou consideravelmente meus poderes que já não eram tão fracos assim e mesmo agora é difícil reprimir um sorriso de felicidade todas as vezes que penso nela. Juntos exploramos cada canto da cidade, às vezes destruindo os jovens mais afoitos que insistiam em se revelar de qualquer maneira aos mortais. Foi também com ela que visitei a floresta amazônica ainda tentando sentir um pouco da emoção descrita por David, sem êxito. Mesmo nunca tendo sido tão feliz assim em toda minha vida de vampiro, Amara ainda não seria aquela que acabaria com todo o gelo de meu coração, finalmente a hora de partir tinha chegado, partida essa que não ocorreu sem lágrimas e promessas de um novo encontro no futuro.

0 comentários:

Postar um comentário